1.27.2008

Vigésima terceira facada VIII

"Mas o que vem a ser isto?" G. olha sentado na cama, para a faca que fala assegurando-lhe que a partir desse dia será quasi-imortal, conquanto não leve a vigésima terceira facada. Desgraçado da vida, enrola-se num repente verdadeiramente repentino no cortinado à mão arrancado com sofreguidão e depois de tentar com um sapato atingir a faca falante, atira-se da janela do quarto abaixo enquanto pensa "eu até sempre fui um tipo normal, como..."A queda de um vigésimo terceiro andar é dolorosa para quem não morre.
G. estatelou-se e manteve-se. A surpresa misturava-se com a dúvida de que talvez fosse um destino do Além como qualquer outro "agora o meu castigo vai ser ficar aqui assim por tempo indeterminado" e então assim ficou até que veio a ambulância para o levar ao hospital, onde descobriram zero mazelas. "Mas você caiu mesmo do vigésimo terceiro?" "Caí, caí!"
Em menos de uma hora estava na ala psiquiátrica. Os testes sucederam-se, assim como a ingestão de medicamentos reguladores da acidez mental. A baba não chegava a cair, mas a hipotética psicose de G. dera autorização aos médicos para um receituário comprovadamente eficaz. Ou seja: "vamos lá tirar essas ideias parvas da cabecinha nem que para isso tenhamos que o transformar numa couve roxa". A côr da sua cara estava realmente a dealbar mas mantinha-se ainda arroxeada, não por causa de alguma equimose, mas falta de ar por não conseguir perceber o que lhe acontecera desde que se deitara nas calmas para mais uma noite de descanso sem sobressaltos. O arroxeado da sua cara era a prova do assombro e medo que convenhamos, não ajudava os médicos a esquecerem a ideia de que havia doença a tratar.

H. é amigo de G. e não está muito convencidode da história que lhe contaram no hospital. A história que G. relata circular e fixamente é que também não é lá muito credível-"ainda por cima diz que se mandou do prédio abaixo". A mulher aconselhara-o a deixar as coisas andar-"Isto hoje em dia a medicina avançou muito. Pode ser que o curem..." Mas há algo de estranho com G., pensa H. "A forma como fala, se colocarmos de lado o entaramelamento, parce-me bem lúcida. Mesmo quando fala do raio da faca que lhe apareceu durante o sono, é assombro que lhe noto na cara, e não maluqueira."

Passaram cinco anos e G. ainda não teve destreza mental para fingir que nada do que relatava vezes sem conta, se havia realmente passado. Os anti-psicóticos, hipnóticos, barbitúricos, benzos, também não ajudavam muito à sua liberdade de pensamento. Quanto mais o medicavam, mais G. se fixava na faca e na espectacular queda do seu andar. "Onde estará o cortinado que usei para me cobrir? Será que está em condições de ser utilizado quando sair daqui? E a faca, seria shogun, ou da feira? acho que tinha cabo de madeira, mas que me acordou tenho a certeza. Porque será tão difícil de perceber uma história tão simples? Anda tudo doido? Uma faca a falar é assim tão descabido?" Se a falta de discernimento começava a assomar já há algum tempo, G. com a ajuda certa e o aumento continuado das dosagens, facilmente enquadraria um diagnóstico modelo para ser estudado numa departamento de psicologia de uma Universidade à escolha. Aliás, havia já um professor psiquiatra a utilizar as características de G. para fazer o diagnóstico diferencial entre esquizotipia e esquizofrenia. Com alguma criatividade, G. já era um tipo esquizóide claro.

H. não consegue dormir muito bem com isto tudo que vem pensando. Os risos na mesa dos copos acerca do estado de G. levam-no a pensar-se como o responsável moral pela situação. Passará a visitar G. diariamente. Elaborará um plano com I., psicólogo há dez anos, para tirar G. do internamento. "O Basaglia ainda não chegou a Portugal"- diz I. rindo-se enquanto dá uma cábula com as características que G. deverá apresentar aos médicos, e a gradualidade com que o deverá fazer.-" Se o gajo mudar tudo de um dia para o outro ainda lhe aumentam a dose retard"- avisou rindo-se. "Um bem disposto este I...."
Durante um ano H. instruiu G. de como devia agir se quisesse sair dali. "Além de que fazeres isto que te mando é também prova para mim, que não estás mesmo maluco da cabeça!" E esse foi mesmo o problema inicial. G. demorava a compreender as questões e simplificava as instruções a ponto de as fazer perigar se postas daquela foram aos responsáveis da ala. "Se não consegues, esperamos. Se não, temos de começar tudo de novo." Começou por pôr de lado alguns medicamentos que deveria tomar. Estratégia deveras arrojada mas imprescindível para que começasse a dormir menos de 14 horas por dia. Se fosse apanhado nessa situação, seria apenas mais uma confirmação da sua instabilidade mental. Nas consultas, G. começou a falar cada vez com menos certeza dos acontecimentos que o puseram ali, demosntrando dúvidas crescentes quanto à veracidade de uma queda de 23 andares-"Realmente agora é que estou a ver a inverosimilhança da coisa"- disse ao fim de um ano e dois meses de estratégia anti-psiquiátrica. O internamento compulsivo acabara. Por unânimidade achou-se que "o senhor G. pode ter uma vida autónoma ainda que sob vigilância periódica das nossas equipas especializadas".

"Então mas e a faca falante?! E a queda? Até já tenho dúvidas, tal era a insistência com que falavas disso." - " Ao fim deste tempo com aquela droga toda nesta cabaça, também já não sei nada!"
Foi com alegria que no jardim da cidade levou duas facadas quando se recusou a ser assaltado. Enquanto a lâmina saía da barriga pela segunda vez pensava:"Vou estudar psicologia, psiquiatria, neurologia, psicopatologia, epistemologia, ética, biologia... Tenho uma eternidade pela frente não é caríssimo assaltante?

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